Texto produzido como resultado das discussões em
grupos como
Tornar-se Negra e Negro, Leituras
AfroCêntricas e UNEGRO/SE.
Agradecimento muito especial a Débora Leite e
Michele Souza, sem a provocação, a reflexão, apoio, colaboração e orientação delas
esse texto não seria possível.
Rosa
Elze, fev 2018
A UNIÃO DE PRETAS E PRETOS
(DE AFRIKA E DA
DIÁSPORA)
E O COMBATE AO COLORISMO
“(...) onde o coração batuca. Vai lá no terreiro rezar pro seu santo e pede ajuda. E honrar seus ancestrais, carregar seus ideais. Não desista nega!” Arielly Oliveira, Negra Soul
A população Negra que
vive nas amerikkkas* pode se reconhecer como parte dos Povos Afrikanos** vivendo
em diáspora e isso é um fator a favor de nossa união, pois as sociedades nas
quais estamos inseridos e inseridas são organizadas tendo o racismo e o
machismo como base, materializada nos projetos colonialistas e de
embrankkkecimento. Dito de outra maneira, vivemos num sistema de mundo que impõe
o pensamento único brankkkocêntrico e que inferioriza e exclui outras inteligências
e povos.
Uma das ferramentas e
práticas dessa estrutura racista é o colorismo: uma crença que universaliza o
homem brankkko (yurugu) e fragmenta o Povo Preto com o objetivo de desumanizá-lo.
Quanto mais escuro menos humano e quanto mais a pele clara, quase humano, porém
nunca humano: passabilidade, concessão, vantagem social, invisibilidade, negação,
embrankkkecimento, encarceramento, genocídio; mas nunca humano.
* Assata Shakur utiliza a
grafia de algumas palavras com a letra “K”, fazendo referência à ku klux khan (kkk),
organização supremacista branca dos estados unidos da amerika.
** Afrika é o nome do continente antes da invasão europoide que mudou
seu nome para África. O uso da letra “K” representa a ancestralidade e
originalidade do continente Negro.
COLORISMO COMO ARMA BRANKKKOCÊNTRICA: A DUPLA VIA DE
NEGAÇÃO
É possível ter em mente
que o colorismo é uma arma-instrumento da sociedade racista para promover a desunião
entre as pretas e os Pretos no brasil transatlântico. Como apresentado na carta
sobre Lixo Lynch, dividir o Povo Preto é negar qualquer laço de solidariedade,
de compartilhamento, pertencimento, ancestralidade e, em último caso, de união.
O colorismo é uma arma do opressor, da cultura eurocêntrica. Falar de colorismo
pode ser um caminho para afastarmos a influência colonial que nos divide e,
assim, nos reconhecermos como povo Negro, com laços em comum, compartilhando
experiências passadas, presentes e futuras.
Umas das maneiras que o
sistema colorista divide e rivaliza é com a dupla via de negação. Uma Preta de
pele mais escura (retinta) é "apontada", "marcada",
"estigmatizada" como sendo “negra” e “inferiorizada”, “desumanizada”,
rejeitada por ser "negra demais". Por outro lado, esse mesmo
colorismo vai "mais facilmente aceitar" um Preto de pele clara
"apontando", "marcando", "estigmatizando" como
nem sendo "tão negro assim", quase embrankkkecido. O racismo é um só,
não existe menos ou mais racismo, o que há é uma diferença de frequência, mas o
colorismo vai dizer que sim, que existe sofrer mais ou menos racismo.
As armas do colorismo visam
nos dividir e exterminar, seja dizendo que não somos Pretos/Pretas porque temos
pele clara (passabilidade) ou dizendo que somos inferiores por sermos Pretos retintos.
Tirar a negritude ou marcar com a negritude. Os dois casos visam negar a
humanidade do povo Negro, invisibilizar, descentralizar nossa existência e nos
dividir. Não é privilégio ser "menos atacado" por ser considerado "menos
negro". Ser "reconhecido" como indivíduo, no colorismo, é uma
forma de tirar nossa memória coletiva, de nos tirar do lugar acolhedor que é
ser parte de um povo com história e domínio de mundo próprio, que não depende
dos yurugu. É essa realidade que o colorismo busca combater.
1. EMBRANKKKECENDO O POVO PRETO
Outra forma de divisão é
associar traços finos, cabelo loiro ou olhos azuis aos yurugus (brankkkidade), sendo
que toda essa variação existe em Afrika há milhares de anos. Mas estando no
brasil, devemos desconfiar quando somos divididos pela cor da pele e pelos
traços do corpo e do rosto. Associar traços finos com os colonizadores europeus
é uma arma do colorismo: nega nossa diversidade afrikana, transforma Pretos em
brankkkos, apaga nossa história e reforça o racismo. Assim, da mesma forma que
somos Pretas e Pretos com traços finos, também somos Pretas e Pretos com traços
largos. O colorismo não aceita nossa união.
2. PASSABILIDADE COMO NEGAÇÃO DO POVO PRETO
Um dos cuidados que
precisamos observar é que uma Preta retinta tem menos espaço e oportunidades em
uma sociedade racista. Se depender do colorismo, para nos dividir e nos
exterminar, passa-se a conceder visibilidade apenas aos Pretos de pele clara – projeto
de embrankkkecimento. Se não nos atentarmos, continuaremos com o referencial de
negro a partir desse modelo racista. Pensar nisso é ter em mente que podemos
ter referências Pretas na grande mídia, mas também reconhecermos referências Pretas
fora dela, em outros espaços - legitimarmos outros saberes, outras práticas
sociais que são nossas, outros territórios nos quais as Pretas e os Pretos são
agentes. Romper com o colorismo.
3. COMBATENDO O COLORISMO
Enquanto a grande mídia,
hegemônica e brankkka, invisibilizar as pessoas Pretas nas artes, esportes, administrações
e nas lideranças, em especial aquelas estereotipadas como fora do padrão;
enquanto a mídia racista filtrar o que vemos, quem conhecemos, e principalmente
quem tem a “aparência ideal” para estar na grande mídia haverá colorismo para
nos dividir.
Buscar nossas próprias
referências e valorizar nossa história é combater o colorismo. Afrocentricidade:
quanto mais Pretas conhecermos, mais nos reconheceremos. Se formos depender dos
yurugus, as youtubers, os/as artistas, apresentadoras e jornalistas serão Negras
e Negros que negam sua origem afrikana, afinal, esse é o propósito do
colorismo. Para um vídeo viralizar, antes é filtrado pelo colorismo. Para
progredir no trabalho antes somos filtradas pelo colorismo. Para nos relacionar
afetivamente somos avaliados pelo colorismo. Quando se fala em
representatividade, não podemos esquecer que o projeto do “racismo a la
brasileira” é clarear a população.
Sempre desconfie da
brankkkidade. Se depender do colorismo, vamos acreditar que as Negras/os de
pele clara ou traços finos têm privilégios. E também vamos acreditar que todas
as Pretas estão igualmente ascendendo ou sendo reconhecidas. O colorismo atua
na nossa autossabotagem, quando diz que quem tem pele clara pode ter uma
chance, mas quem é retinto não adianta nem tentar. Se formos depender da grande
mídia, seja TV ou rede social, ainda sofreremos com esse filtro colorista que
nos divide. As grandes gravadoras, os grandes patrocinadores, o público hegemônico
é formado pela minoria brankkka. Circular, compartilhar, divulgar, reconhecer o
trabalho, a correria, a criatividade, os estudos e pesquisas das nossas irmãs Pretas
e irmãos Pretos sem o filtro do colorismo é um desafio e um fortalecimento
nosso na luta antirracista.
“Era uma vez eu ia bem sozinha e caminhar comigo era bom. Não tinha mais conto de fadas e seu branco padrão. Revi a história e libertei os cabelos de minha criança. Eu me peguei no colo e me acalentei. Sou a voz, insubmissa voz. Insubmissa negra voz. É que o sistema quebra quando a gente se ama. Opção, opção da não repetição” Maíra Baldaia, Insubmissa
4. CONTRA QUEM NÓS REAGIREMOS?
Estar atento ao
colorismo não deve ter como consequência nos dividir. Quando uma atriz de pele
clara interpreta uma personagem histórica que é Preta retinta, não é contra a
atriz que temos de nos voltar, é contra a estrutura (patrocinador, público,
crítica etc) que impõem a passabilidade e o embrankkkecimento. Podemos nos
apoiar sem deixar de criticar a estrutura racista. Podemos nos fortalecer se
conversarmos entre nós sobre passabilidade. Sobre como uma de nós pode levantar
o outro, e não ocupar sozinho ou sozinha o espaço que os yurugus e o colorismo
reservaram. Solidão não, união.
5. UNIÃO É UMA ESCOLHA
Por outro lado, nossa união
não se pretende universal como a estrutura racista se impõem. É provável que
existam Pretos que não queiram se reconhecer, por diversos motivos; então por que
atribuir a negritude a quem nunca quis e ainda não quer? Isso é diferente de
compartilhar a negritude com quem não teve a chance de se reconhecer. Tornar-se
Negro não é escolher ser Negro, o racismo não lhe oferece escolha. A escolha é
lutar contra o racismo e lutar unidos parece ser um ótimo caminho.
As pessoas que tiveram
passabilidade na medida que embrankkkeciam e negavam a própria negritude sofrem
o mesmo racismo de quem sempre foi inferiorizado por ser Negro. Contudo, a frequência
deve ser observada, pois mesmo nos negando a sermos definidas/os pelo colorismo,
podemos saber reconhecer a violência da passabilidade que existe contra as Pretas
e Pretos retintos. Violência criada e alimentada para nos dividir.
6. COMPARTILHAR EXPERIÊNCIAS, SABERES E VIVÊNCIAS:
NOS UNIR
O colorismo promove
diferentes formas de experienciar o racismo, e podemos nos fortalecer ao
conversarmos, compartilharmos e, assim, compreendermos melhor nossa condição de
Pretas e Pretos em diáspora. Uma Preta que
nunca teve a chance de se reconhecer como indivíduo ou como ser humano porque
antes disso o yurugu a marcou e a inferiorizou como Negra, essa pessoa
experimenta a vivência numa sociedade racista diferente daquela Preta embrankkkecida
que sempre pode viver "sem se preocupar com o racismo", ou seja,
passabilidade. Mesmo neste grupo que “vive por um tempo sem se preocupar com o
racismo” podemos perceber a diferença entre quem se descobre Negro por ser
inferiorizado e quem passa a se afirmar Negro porque sempre teve a negritude
negada.
Quando falamos de
genocídio, nem sempre é diretamente sobre Pretos de pele clara; quando falamos
de miscigenação/embrankkkecimento, nem sempre é diretamente sobre Pretos retinto,
mas é tudo sobre o Povo Preto - isto é, se quisermos e se estivermos unidas e
unidos. Podemos falar dos nossos, a favor dos nossos irmãos e irmãs, mas não
quer dizer que devemos falar no lugar dos nossos a ponto de invisibilizar.
Nosso erro pode ser
querer discutir entre nós quem sofre mais, quem é menos representada ou
representativo, quem não é Preto porque está embrankkkecido, porque não se
afirma, ou quem é Preto mesmo que não se afirme ou esteja embrankkkecido (dar
selo de negritude). Marcar ou reforçar a negritude de alguém que não se afirma Negro
nem sempre traz benefícios para nossa união; principalmente quando há uma insistência
em afirmar que pessoas de pele clara (brankkkos) são negras embrankkkecidas, e,
assim, se atribui a negritude a quem não se interessa por ela. Ou atribuir a
quem reforça a afroconveniência ou aceita a falsa democracia racial. A questão
não é só se afirmar Preto e Preta, mas ser antirracista. Pensando na nossa união,
não se trata de tirar a negritude de ninguém, mas por que insistir em atribuir
a negritude a quem não se interessa? Ou por que atribuir a negritude a quem tem
pela branca? Lembremos que o projeto do colorismo é o embrankkkecimento. E
quais são as Pretas e Pretos excluídos desse projeto?
7. NEGRO PADRÃO NÃO É PRIVILÉGIO
O colorismo oferece
para uns a invisibilidade, uma humanidade de concessão: enquanto a Preta não
falar de racismo talvez não seja apontada como Preta. Mas caso a Preta queira
se reconhecer será negada ou minimizada a
sua negritude – ou valorizada como mestiça (passabilidade). Esse último aspecto
é mais uma grande armadilha do colorismo. Em certos momentos, a sociedade
racista tenta nos conformar ao representar o Negro no padrão brankkko como
forma de excluir a diversidade, nos dividir e nos hierarquizar. O fato de
parecer que existe "negra padrão" na TV, nas revistas, internet e
tendo visibilidade não é privilégio Preto, é colorismo para nos dividir e nos exterminar;
é o avanço do projeto de embrankkkecimento porque quem controla a grande mídia são
os yurugus.
A representatividade é
uma arma contra o racismo, então temos de estar atentos e atentas como o
sistema racista reage. Colorismo é um
filtro que determina o padrão brankkko sobre o Negro de modo a anular, excluir
e negar a diversidade do Povo Negro. (Em outro sentido, para promover o genocídio
também é atribuído um "elemento padrão" a ser eliminado).
8. O COLORISMO BUSCA LEGITIMAR O PROJETO DE EMBRANKKKECIMENTO
Quem sempre teve
passabilidade através do embrankkkecimento, a partir do momento que se afirmar
como Negro pode ser reconhecido como tal porque a brankkkidade se beneficia com
o clareamento do Povo Preto. Pode ocorrer de Pretos de pele clara, que há pouco
tempo não se viam como Pretos, deixarem o cabelo crescer natural para se
afirmarem como Pretos. O colorismo vai eleger quem tem pele clara como "Negro
padrão". Criticar isso só combate o racismo se voltarmos nossas forças
contra o colorismo. Se nos voltarmos contra as Pretas e Pretos continuaremos
divididos, enfraquecidos.
Pessoas brankkkas têm
privilégio para se afirmarem como negras; pessoas embrankkkecidas podem ter concessão
para se reconhecerem como negras, mas o inverso não; pessoas Pretas não têm a mínima
chance de se reconhecerem ou se afirmarem brankkkas. Essa violência gerada pelo
colorismo nos divide e, se não reconhecermos como o racismo atua, continuaremos
fazendo o jogo dos yurugus. Nossa luta depende de nossa união, Pretas e Pretos do
continente e da diáspora.
“Toda
menina já quis ser princesa, mesmo que diferente e a sua maneira. Mas havia um
modelo de princesa que não fazia o meu estilo, eu gostava mais das princesas
guerreiras e descobri que, quando mais velha, das minhas descendências de
África, haviam muitas”.
Aika
Cortez, Intro Babylon Princess
9. UMA BOA REAÇÃO É A UNIÃO DO POVO PRETO, DE AFRIKA
E DA DIÁSPORA
Combater o colorismo não
é apontar a vantagem ou concessão que uma Preta ou Preto possa vir a ter na
sociedade brankkkocêntrica, mas nos fortalecermos na crença que não serve o
filtro do colorismo dizendo quais Pretos são aceitáveis, são representativos. Não
basta termos Pretos de traços finos na TV, nos filmes ou vídeos online; não
basta ter alguns Pretos ou Pretas de cabelo 4c ou dreadado; precisamos de muito
mais. E precisamos ter as Pretas sendo donas de TV, de produtoras,
distribuidoras, escolas, indústrias, hospitais etc.
Contar a nossa própria história,
sem depender da concessão de nenhuma sociedade racista, de acordo com nossa existência
centrada em Afrika - representada por todo conhecimento e herança que o Povo
Preto criou e preservou, no continente e na diáspora. Sendo esse o referencial
estaremos nos reconectando com nossa ancestralidade, com nossa espiritualidade,
tradições, leis, práticas e maat afrikano que nos permite autonomia para
definir a nós mesmas/os, sermos agentes e protagonistas da nossa história.
Sugestões para Referências
Assata Shakkur. Assata Shakur sobre luta armada e clandestinidade.
https://assatashakurpor.wordpress.com/2016/07/17/texto-assata-shakur-sobre-luta-armada-e-clandestinidade/
Cheikh Anta Diop, A unidade cultural da África negra. https://onedrive.live.com/?authkey=%21AGlZFIbIxOÉnpw&cid=EB48622F585FE35A&id=EB48622F585FE35A%21365&parId=EB48622F585FE35A%21105&o=OneUp
Frantz Fanon. Pele negra, máscaras brancas
https://docs10.minhateca.com.br/907690196,BR,0,0,FANON,-Frantz.-Pele-negra,-m%C3%A1scaras-brancas.pdf
Grupo
de Leituras Afrocêntricas. Por que
algumas pessoas escrevem África com um K (Afrika x África)
Kwame
Ture e Molefi Asante. Pan Africanismo e
Afrocentricidade (A África e o Futuro) – https://youtu.be/MTrvIbOd-sY
Marcus
Mosiah Garvey – A Estrela Preta
https://afrocentricidade.wordpress.com/2013/08/31/marcus-mosiah-garvey-a-estrela-preta/
Marimba
Ani. Yurugu - Uma Crítica
Africano-Centrada do Pensamento e Comportamento Cultural Europeu.
http://minhateca.com.br/Biblioteca.Esta.Hora.Real/Documentos/Yurugu-An+African+Centered+Critique+of+European+Cultural+Thought+and+Béavior-Marimba+Ani+smaller,1015142870.pdf
Míriam
Cristiane Alves. Paradigma da
afrocentricidade e uma nova concepção de humanidade em saúde coletiva:
reflexões sobre a relação entre saúde mental e racismo.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-11042015000300869&script=sci_abstract&tlng=pt
Nah
Dove. Definindo uma Matriz
Materno-Centrada para Definir a Condição das Mulheres.
https://estahorareall.files.wordpress.com/2015/12/definindo-uma-matriz-materno-centrada-para-definir-a-condiccca7acc83o-das-mulheres-nah-dove-pdf.pdf
Neusa
Santos. Tornar-se negra.
https://docs.google.com/file/d/0B7cRDv6fYLjEc1JwWm03LTRXVzg/edit
Comentários
Postar um comentário