NOSSO FUTURO É RETOMAR A NOSSA HISTÓRIA - SANKOFA

 

Uma forma de compreender a Ancestralidade é percebendo que nós só estamos aqui nesse mundo porque alguém veio antes de nós. Somos os sonhos de nossos Ancestrais e a nossa existência é o testemunho vivo da grandiosidade do nosso passado. Cultuar nossos Ancestrais é uma forma de honrar a nossa existência e de agradecer por toda herança cultural e espiritual que nos foi deixada. Na filosofia, o existencialismo está relacionado com a condição humana e o sentido da vida, ou seja, com a existência humana e a interação das pessoas com o mundo.



Quando observamos a vida das populações Negras e Indígenas em Abya Yala, mesmo com todo o discurso de igualdade e de humanidade, ainda são visíveis as relações racistas promovidas pelo povo branco (eurodescendente) que apesar de serem minoria exercem o Poder nessas sociedades. Como consequência, as pessoas Negras crescem com um forte “descentramento existencial”, pois desde a infância vai sendo imposta uma ideia de inferiorização por não se encaixar no padrão branco estabelecido. Por exemplo, ainda hoje é muito comum na nossa sociedade o uso da expressão “cabelo ruim” ou “cabelo duro”. Essa negativação das características Afrikanas promovida pelos brancos acaba sendo internalizada pelas pessoas Negras gerando um sentimento de não pertencimento e não aceitação (crise existencial). E mais, a mensagem racial de que o cabelo liso e loiro é mais bonito gera a busca por uma negação da própria identidade e uma identificação com a aparência dos opressores. Isso é o que caracteriza o “descentramento existencial”.

Com o passar do tempo, a existência dos jovens Negros/as se torna marcada pela “dupla consciência” de saber que é Negro numa sociedade branca que não vê as pessoas Negras como um ser humano completo. Pelo contrário, é atribuído valores negativos a quase tudo que é Negro. Em terras de Diáspora, até a palavra Negro/Negra é evitada entre os brancos ou ricos, preferindo falar moreno, moreninho, escurinho etc seguindo a falsa lógica de que “nem todos gostam de ser chamados de Negro”. Afinal, por que chamar de Negro seria um problema? Evidente que o racismo promovido pelos brancos sempre reforçou e reforça esse pensamento que negativa a identidade Negra. Quase sempre, falar que uma pessoa é Negra acaba reduzindo ela à sua cor e reforçando a desumanização. Justamente por isso, por conta dessa violência, se afirmar como mestiça ou pardo passa a ser uma estratégia para fugir do racismo ao dizer que não é Negro (angústia existencial).

A definição do ser Negro não parte do próprio Povo Negro, então somos definidos pelos outros e não por nós mesmos. Não se definir significa ter uma existência dependente de quem não nos aceita – humanidade por concessão. Por isso que o existencialismo vai propor que as pessoas Negras deixem de viveram a partir da reação (sempre combatendo os ataques racistas) e passemos também a viver a partir da ação (afirmar nossa Negritude). Um Povo se autodefinir é definir sua própria existência de acordo com seus próprios valores.

A demonização das religiões de Matriz Afrikana como o candomblé, faz com as pessoas não aceitem a cultura Negra e passem a rejeitá-la, levando ao conflito de “ser negro, mas não conhecer a cultura Negra”. A criminalização da cultura Negra que a sociedade branca impôs considerando o samba, a capoeira, o funk etc como associados ao crime e à violência acaba sendo transferida para o Povo Negro que também passa a ser associado à violência e agressividade (desumanização). Daí o surgimento de movimentos como “Vidas negras Importam” e “Black Power” para afirmarem a Humanidade e a beleza de ser Negro e de ser Negra.

Junto a isso, existe a falsa promessa de que se adotarmos a cultura branca seremos aceitos e o racismo desaparece. Mas sabemos que não adianta adotar a religião branca cristã, se formar nas universidades seguindo os modelos brancos, morar nos bairros de maioria branca que mesmo assim o Povo Negro continuará sofrendo racismo. O caso de Beyoncé, Jay Z e sua filha Blue Ivy mostra que apesar de todo talento, riqueza e sucesso no trabalho as pessoas Negras continuam alvo do racismo, tendo sua existência e cultura negada ou desrespeitada pelos brancos. Não é à toa que existe um ditado popular que afirma “a pessoa Negra tem de ser 10 vezes melhor para provar seu valor”. A vida das pessoas Negras em uma sociedade brancocêntrica é marcada pela busca incessante e imposta de ser sempre melhor, ser mais, como uma forma de provar ser tão bom quanto o “ideal” (branco). 



A ascensão econômica é vista como uma alternativa para fugir da falsa ideia de que as pessoas Negras sofrem racismo porque são pobres e marginais. Através dos estudos e do crescimento profissional é esperado ser reconhecido como ser humano, mas nesse processo ocorre um embranquecimento. Para conseguir o emprego a candidata deve prender o cabelo ou alisar; o sucesso no amor é associado a namorar uma pessoa branca (muito comum entre artistas e esportistas); as crianças são batizadas com nomes europeus; frequentar teatro e ópera para demonstrar “ter cultura”; comprar um carro caro ou um celular famoso para mostrar poder econômico; a ascensão social vem acompanhada da negação da Negritude. Mas nada disso impede a violência policial, as acusações de roubos nos shoppings, a identificação sempre como empregado e nunca como cliente nos ambientes de luxo.



Esse processo violento de perceber que nunca é aceito plenamente, que sempre será desumanizado, promove uma angústia que pode levar à depressão, alcoolismo e ao suicídio. Por isso, como sugerem as filósofas existencialistas, o caminho da Humanidade para o Povo Negro está em abraçar sua própria Cultura e Civilização. Sankofa é um princípio Afrikano do Povo Akan que nos oríenta a retomar nossa história, como forma de autodeterminação e de definição a partir de nossa própria história. Ao usarmos nossa herança cultural como referência para nos afirmar (re)construímos nossa humanidade sem depender de valores não Negros. Reconhecer as Escolas de Samba e os Bailes Black como espaços de Poder Preto e Afirmação da Negritude; perceber a oralidade como uma intelectualidade circular e coletiva que se manifesta nas rodas de capoeira; respeitar e conhecer as religiões de Matriz Afrikana; estudar e conhecer a História milenar e grandiosa das civilizações Afrikanas, as primeiras a desenvolverem ciências e filosofia; valorizar a incrível beleza dos cabelos e traços faciais. Isso é o que chamamos de “Tornar-se negro”, o autorreconhecimento, sentimento de pertencimento e aceitação. É uma construção, é aceitar que não precisamos ter um ideal branco quando podemos nos afirmar e reinventarmos. Como afirmou Neusa Santos: “Ser Negra para mim é um constante devir, é tornar-me negra. É transcendermos os estereótipos que nos são impostos, de inferioridade, etc. e reinventarmos nossa existência. É acolhermos nossas origens e sermos o que quisermos ser e não nos encaixarmos em padrões por serem mais bem aceitos. É mostrar para o mundo que o ideal do Negro é ser ele mesmo e não algo outro”. 

 

Referências

Lélia Gonzalez – A categoria político-cultural de amefricanidade

Neusa Santos – Tornar-se Negro

Franz Fanon – Peles Negras, máscaras brancas.

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