A cosmogonia Kemética

Para atermos a fatos seguros, a "cosmogonia" Kemética que será resumida mais adiante está atestada nos Textos das pirâmides (2600 a.C.), quer dizer, em uma época na qual os gregos nem sequer existiam para a história e as noções filosóficas chinesas e hindu não eram mais que divagações.

Se podem distinguir três grandes sistemas de pensamento em Kemet, cada um dos quais tenta explicar a origem do universo e da aparição de tudo o que existe:

- sistema de Khmun (Hermopolitano)

- sistema de Lunet Mehet (Heliopolitano)

- sistema de Men-nefer (Menfita)

- e se poderia acrescentar o sistema Uaset (Tebano)

O resumo que segue condensa o essencial destas quatro doutrinas*, porém sendo rigorosamente fiel aos textos Kemeticos; não é uma interpretação tendenciosa.

* Diop utiliza fundamentalmente as duas primeiras, ainda que possa fazer alguma alusão às outras, sem descrevê-las. A teologia menfita está centrada no Deus Ptah e os textos que se conhecem são tardios, da restauração retradicionalizadora dos Faraós Núbios da XXV Dinastia, ainda sem dúvida que reconhece elementos anteriores (tanto Heliopotanos como Hermopolitanos) e poderia ser uma antiga tradição paralela ou enriquecedora; sua principal novidade em sua versão da XXV Dinastia é o caráter primogênito de Ptha - paralelo às águas caóticas - e sua ação criadora através do pensamento e da palavra (possivel influência no cristianismo, em particular em sao João). O sistema tebano foi criado pelos sacerdotes de Amom, ao redor desse Deus, a partir do Reino Médio, reelaborando as cosmogonias heliopolitana e hermopolitana e, talvez menfita. A Hemenu (octágona) hermopolitana nasce das trevas em Tebas, onde foi enterrada (e adorada), passando a ser parte das deidades subterrâneas que acompanham a Ausar Osiris e a Amon-Ra durante a noite. Amon, por sua parte, se identifica sucessivamente com as serpentes.

Segundo os quatro sistemas, o universo não foi criado do nada, um dia de repente. Sempre teria existido uma matéria não criada, sem começo nem fim (o ápeiron, sem limites nem determinantes, de Anaximandro, Hesíodo...). Está matéria caótica era, em origem, o equivalente do não ser, pelo simples fato de estar desorganizada; assim o não ser não era o equivalente ao nada, desse nada o qual um dia havia surgido, sem saber exatamente como, a matéria que seria substância do universo. Essa matéria caótica continha em estado de arquétipos (Platão) todas as essências do conjunto dos seres futuros que, em seu momento, seriam chamados à existência: céu, estrelas, terra, ar, fogo, animais, plantas, humanos, etc. Esta matéria primordial, nun ou "águas primordiais", se elevava ao nível de uma divindade. Assim, desde o início, cada princípio explicativo do universo se dobrava com uma divindade. A medida que o pensamento filosófico foi se desenvolvendo em Kemet e, mas particularmente na grécia (sobretudo com a escola materialista), a divindade foi cedendo o passo ao princípio.




A matéria primitiva continha também uma lei de transformação inerente, o princípio da evolução da matéria ao longo do tempo, considerado por sua vez como uma divindade: Kheper (Jéper ou Jepri). É a lei do devir que, ao atuar sobre a matéria no tempo, atualiza os arquétipos, as essências, os seres que haviam sido criados em potência muito tempo antes de ser criado em ato: Platão falaria mais tarde do Mesmo e do Outro ou a teoria da reminiscência; Aristóteles teorizaria sobre matéria e privação, potência e ato...

Envolvida em seu próprio movimento evolutivo, a matéria eterna, incriada, acabou por tomar formas à força de ir ascendendo pelos diferentes níveis de organização. A primeira consciência que emergiu assim do Nun primordial foi Deus, Ra, o demiurgo (Platão), que levaria a cabo a criação.

Até aqui, a "cosmogonia" egípcia é de natureza materialista, já que postular a existência de uma matéria eterna incriada é fazer declaração de fé [testemunho] materialista, ao excluir o nada e contemplar o princípio próprio de evolução como uma propriedade intrínseca da mesma matéria. Este componente materialista do pensamento egípcio prevalecerá entre os atomistas gregos e latinos: Democrito, Epicuro, Lucrecio.

No entanto, com a aparição do demiurgo, Ra, a cosmogonia Kemética toma uma nova direção pela introdução de um componente idealista: Ra leva a cabo a criação mediante o verbo (religiões judaica cristã, islã), o logos (Heráclito), o espírito (idealismo objetivo de Hegel).

Basta que Ra conceba os seres para que esses passem a existir. Há, pois, uma relação evidente, objetiva, entre o espírito e as coisas. O real é necessariamente racional, inteligível, dado que é espírito; portanto, o espírito pode apreender a natureza exterior. Ra é o primeiro Deus, o primeiro demiurgo da história que foi criado pelo verbo. Todos os demais deuses da história vieram depois dele e existe uma relação histórica demonstrável entre a palavra de Ra, o ka - ou razão universal presente em todas as partes do universo, e em cada uma das coisas -, e o logos da filosofia grega ou o verbo das religiões reveladas.

A "ideia objetiva" de Hegel não é outra coisa que a palavra de Deus (de Ra), sem Deus, uma mitificação da religião judaico cristã, como disse Engels.

Pois bem, Ra vai criar os quatro pares divinos segundo a cosmogonia heliopolitana:


1° Shu e Tefnut = o ar (espaço) e a umidade (água)

2° Geb e Nut = a terra e o céu (a luz, o fogo)

Nestes primeiros pares se reconhecem os quatro elementos constitutivos do universo, segundo os filósofos gregos pre socráticos (Tales, Anaximandro, Heráclito, Parmênides, Anaxágoras), a saber: o ar, a água, a terra e o fogo. O próprio Platão todavia adotará essa teoria.

3° Ausar Osíris e Auset Ísis: o par humano fértil que vai gerar a humanidade (Adão e Eva)

4° Seth e Néftis: o par estéril que introduzirá o mal na história humana. Não há aqui noção alguma de pecado original. São os homens e não as mulheres que introduzem o mal. Nada de pessimismo nem de misoginia, atitudes tão habituais das sociedades nômades ario-semita.

Em conclusão, um componente idealista (ou espiritualista) se introduziu na cosmogonia egípcia com a aparição do demiurgo Ra, sendo as bases das concepções das escolas idealista grega (Platão, Aristóteles).

Enfim, historicamente falando, um terceiro componente da cosmogonia Kemética se encontra na origem das religiões reveladas, e da judaica-crista em particular.

De fato, Ra é sem dúvida o primeiro Deus da história do pensamento religioso, autocriado, sem ter sido gerado, sem pai nem mãe.

Por outra parte, Seth, com ciúmes devido a sua esterelidade, mata seu irmão Ausar Osíris (que simboliza a vegetação, a partir da descoberta da agricultura no neolítico). Este ressucitará para salvar a humanidade (do homem!): Osíris é o Deus redentor.

Em todo caso, Ausar Osíris é com segurança o Deus que, três mil anos antes de Cristo, morre e ressuscita para salvar os homens. É o Deus Redentor da humanidade: subirá ao céu à direita de seu pai, o grande Deus Ra. É filho de Deus. No "livro dos mortos", se diz, 1500 anos a.C.: "Isto é a própria carne de Ausar" Dionísio, réplica de Ausar no norte do mediterrâneo, dirá 500 a.C.: "Bebe, este é meu sangue; come, esta é minha carne". E vemos como a degradação de semelhantes crenças podem conduzir a noção de bruxo devorador de homens na África Negra.

A cosmogonia Kemética diz igualmente: "eu era um, eu me converti em três". Esta noção de trindade está presente em todo o pensamento religioso egípcio e se distingue nas múltiplas tríades divinas egípcias, tais como Ausar-Auset-Heru ou Ra, o sol da manhã, do meio dia e do entardecer.

Ao fim, "Cristo" não teria um origem indoeuropeia. Viria da expressão egípcia faraônica Kher Sesheta, "o que guarda os mistérios", que se aplicava às divindades, a Ausar, a Anubis... Não se aplicou a Jesus até o século iv, por influencia religiosa.

O bezerro (símbolo de Hathor) recebe sobre ele um raio descendo do sol e, por efeito deste, "ilumina" ao Deus Apis: se trata de um prenúncio incontestável da imaculada conceição da santa virgem.


Tradizido do espanhol por Abibiman Kandace. Baixe aqui o arquivo em pdf.

Cheikh Anta Diop. "Civilização e barbárie: uma antropologia sem condescendência" (2015). Capítulo 17. Existe uma filosofia africana? A cosmogonia egípcia (páginas 396-399). Livro original publicado em 1981.

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