Circuncisão e androgenia divina

Os Egípcios praticavam a circuncisão já em tempos pré-históricos; eles transmitiram esta prática para o mundo Semita em geral (Judeus e Árabes), especialmente para aqueles a quem Heródoto chamou de Sírios. Para mostrar que os Cólquidas eram Egípcios, Heródoto citou estas duas indicações:

Minhas próprias conjecturas foram fundamentadas, em primeiro lugar, no fato de que eles são de pele-preta e têm cabelo lanoso, que certamente conta, mas não muito, uma vez que diversas nações são assim também; mas além disso e mais especialmente, sobre a circunstância de que os Cólquidas os Egípcios e os Etíopes, são as únicas nações que têm praticado a circuncisão desde os mais remotos tempos. Os Fenícios e os Sírios da Palestina confessam que aprenderam o costume dos Egípcios; e os Sírios que moram sobre os rios Termodonte e Parthenius, bem como os seus vizinhos os Macronianos dizem que o adotaram recentemente a partir dos Cólquidas, Ora, estes são os únicos países que usam a circuncisão, e está claro que todos eles imitam aqui os Egípcios. * [* - History of Herodotus (História de Heródoto), p. 115.]

 Antecipando a concordância de todas as mentes lógicas, Eu chamo de Negro * um ser humano cuja pele é preta; especialmente quando ele tem cabelos crespos. Todos os que aceitam esta definição irão reconhecer que, de acordo com Heródoto, que viu os Egípcios tão claramente quanto o leitor está vendo este livro agora, a circuncisão é de origem Egípcia e Etíope, e os Egípcios e Etíopes não eram outros além de Negros habitando regiões diferentes. [* - A probabilidade de encontrar homens com pele preta e cabelo lanoso, sem qualquer outra característica étnica comum aos Negros, é cientificamente nula. Chamar tais pessoas de "Brancos com pele preta" porque eles alegadamente possuem traços finos, é tão absurdo quanto a denominação "Negros com pele branca" seria se aplicada a três quartos dos Europeus que não possuem feições nórdicas. É por isso que tal atitude é apenas pseudo-científica, mesmo se a pessoa que a adote afirme ser estritamente científica; esta consiste em generalizar a partir de exceções infinitesimais.]

 Assim, podemos entender por que os Semitas praticam a circuncisão, apesar do fato de que suas tradições não apresentam qualquer justificação válida para isto. A fraqueza dos argumentos em Gênesis é típica: Deus pede a Abraão (e mais tarde a Moisés) para ser circuncidado, como um sinal de uma aliança com Ele, sem explicar como a circuncisão, considerada do ponto de vista da tradição Judaica, pode levar à noção de uma aliança. Isto é tanto mais curioso porque Abraão teria sido circuncidado com a idade de noventa anos. No Egito, ele havia se casado com uma mulher Negra, Hagar, a mãe de Ismael, o ancestral Bíblico do segundo ramo Semita, os Árabes. Ismael foi dito ser o antepassado histórico de Mohammed. Moisés, também, casou com uma Midianita, e foi em conexão com seu casamento que o Eterno lhe pediu para ser circuncidado. O que deve ser observado nestes contos lendários é a idéia de que a circuncisão foi introduzido entre os Semitas apenas como resultado do contato com o mundo Preto – o que está de acordo com o testemunho de Heródoto.

 Somente entre os Pretos é que a circuncisão encontra uma interpretação integrada numa explicação geral do universo, em outras palavras, uma cosmogonia. Especificamente, a cosmogonia Dogon *, que Marcel Griaule reporta. [ * - O grupo étnico Dogon na República do Mali, anteriormente Sudão Francês”.] 

Em Dieu d'eau [O Deus da água], ele nos lembra de que, para fazer sentido, a circuncisão deve ser acompanhada pela excisão. Estas duas operações removem algo feminino do sexo masculino e algo masculino do sexo feminino. Para a mentalidade arcaica, uma tal operação se destina a fortalecer o carácter dominante de um único sexo em um determinado ser humano.

De acordo com a cosmogonia Dogon, um bebê recém-nascido é, em certa medida andrógino, como o primeiro deus:

Enquanto mantém o seu prepúcio e clitóris, indicações do sexo oposto para o sexo aparente, masculinidade e feminilidade têm igual força. Assim, não é certo comparar o incircunciso com uma mulher; como uma menina em quem a excisão não foi executada, ele é ambos masculino e feminino. Se essa indecisão sobre seu sexo fosse autorizada a continuar, ele (ou ela) poderia não ter nenhum interesse em procriação.

Estas, então, são as várias razões para a circuncisão e excisão: a necessidade de livrar o filho de uma força maligna, a necessidade de ele (ou ela) pagar uma dívida de sangue e transformar-se definitivamente em direção a um dos sexos. * [* - Marcel Griaule, Dieu d'eau. Paris: Editions du Chêne, 1948, pp; 187, 189.]


Para esta explicação da circuncisão ser válida, a androginia divina, a causa tradicional deste princípio na sociedade Africana, também deve ter existido na sociedade Egípcia. Só então poderemos ser justificados na identificação das causas rituais da circuncisão entre os Egípcios e no resto da África Preta. De fato, Champollion o jovem, escreve em suas cartas a Champollion-Figeac sobre a androginia divina de Amon, Deus Supremo do Sudão Meroítico e Egito: "Amon é o ponto de partida e o ponto focal de todas essências divinas. Amon-Ra, o Supremo, o Ser primordial, seu próprio pai e denominado o marido de sua mãe, tem sua porção feminina inclusa em sua própria essência, que é ambos masculina e feminina."

O Nilo é também representado por um personagem andrógino. Amon é também o Deus de toda a África Preta. De passagem, pode-se dizer que no Sudão Meroítico, África Negra, e Egito, Amon está conectado com a idéia de umidade. Seu atributo em todos estes países é o carneiro [ram]. Assim, no volume intitulado significativamente, Dieu d'eau (Deus da água), quando Marcel Griaule escreve sobre o deus Dogon Amma, esta divindade aparece na forma do Deus-Carneiro, com uma cabaça entre seus chifres. Na cosmogonia Dogon (Sudão "Francês"), Amon desce do céu em um arco-íris, símbolo da chuva e umidade.

Embora alguns Pretos tenham abandonado a circuncisão, por esquecimento de suas tradições ou por várias outras razões, embora haja uma tendência crescente na África Preta para renunciar à excisão, e embora a circuncisão seja uma operação tecnicamente diferente para Egípcios e Semitas, isso não altera a raiz do problema. No entanto, para a identificação ser completa e o argumento convincente, a excisão deve também ter existido no Egito. Estrabão diz-nos que este era o caso:

"Os Egípcios são um especialmente cuidadosos em criar todos seus filhos e circuncidar os meninos e até mesmo as meninas, um costume comum aos Judeus um povo originário do Egito, como nós observamos quando discutimos esse assunto." (Bk. 17, Cap. 1 , par. 29).


Cheikh Anta Diop, A origem Africana da civilização. capítulo 7 Argumentos suportando uma origem Negra, páginas 280 a 285.

Comentários