Do vale do Hapi para o interior de Afrika

 No vale do Nilo, a civilização resultou da adaptação do homem àquele meio particular. Como declarado pelos antigos e pelos próprios Egípcios, ela se originou na Núbia. Isso é confirmado pelo nosso conhecimento de que os elementos básicos da civilização Egípcia não estão nem no Baixo Egito, nem na Ásia, nem na Europa, mas na Núbia e no coração da África; além disso, ali é onde nós encontramos os animais e plantas representados na escrita hieroglífica. 

 Os Egípcios geralmente medem a altura das águas de inundação com um “Nilometro”, e partir daí deduzem o rendimento anual das colheitas por cálculo matemático. O calendário e astronomia também resultaram desta vida camponesa sedentária. A adaptação ao meio físico deu origem a certas medidas de higiênicas: mumificação (para evitar epidemias de peste a partir do Delta), jejum, dietas, e assim por diante, que gradualmente levaram a medicina a vir à existência. O desenvolvimento de vida social e intercâmbios requeriu a invenção e uso da escrita.

 Vida sedentária levou à instituição da propriedade privada e de toda uma ética (resumida nas questões perguntadas ao falecido no Tribunal de Osíris). Este código de ética era o oposto dos belicosos hábitos predatórios dos nômades da Eurásia. *

[* - Aqui está a famosa passagem do Livro dos Mortos, em que o falecido faz uma prestação de contas de seus atos terrenos perante o Tribunal presidido pelo deus Osíris. É facilmente visto que o Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, religiões posteriores, tomaram o dogma do Juízo Final a partir deste texto: "Eu não pequei contra os homens. . . Eu não fiz nada para desagradar os deuses, Eu não indispus ninguém contra seu superior. Eu não deixei ninguém passar fome. Eu não fiz ninguém chorar. Eu não matei, nem ordenei ninguém para matar. Eu não fiz ninguém sofrer. Eu não reduzi os alimentos para o templo. Eu não toquei no pão dos deuses. Eu não roubei ofertas para o mortos bem-aventurados. Eu não reduzi a medida do grão. Eu não encurtei por um côvado nem trapaceei nos pesos. Eu não tirei o leite da boca da criança. Eu não removi o gado do pasto. Eu não represei a água da inundação durante o seu período. . . . Eu não fiz nenhum dano aos fundos do rebanho, da propriedade, ou do templo. Louvado sejas, Ó Deus! Veja, Eu venho a Ti sem pecado, sem mal. . . . Eu tenho feito o que é agradável aos deuses. Eu tenho dado pão para o faminto, água para quem tem sede, roupa para o necessitado, um barco para quem não tinha nenhum. Eu fiz oferendas para os deuses e ofertas para os mortos bem-aventurados. Salve-me, proteja-me. Você não me acusará diante do Grande Deus. Eu sou um homem com a boca pura e coração puro. Aqueles que me vêem dizem: Bem-vindo!”]


Quando, como uma consequência da superpopulação do vale e de convulsões sociais, os Negros do Nilo penetraram mais profundamente no interior do continente, eles encontrariam novas condições físicas e geográficas. Uma determinada prática, instrumento, técnica ou ciência, anteriormente indispensável nas margens do Nilo, já não era uma necessidade vital na costa Atlântica, nas margens do Congo e do Zambeze. Assim, é compreensível que alguns fatores de cultura Negra no vale do Nilo possam ter desaparecido no interior, enquanto que outros fatores, não os menos fundamentais, têm durado até nossos dias. 

Símbolos Nsibidi

 A ausência de papiro em algumas áreas contribuiu para a escassez da escrita no coração do continente, mas, apesar de solenes declarações para o contrário, esta [a escrita] nunca esteve totalmente ausente da África Preta. Em Diourbel, principal cidade de Baol, no Senegal, no quarteirão Ndounka perto da estação ferroviária, não muito longe da Estrada Daru Mousti, há um baobá coberto com hieróglifos, desde seu tronco até seus ramos. Pelo que me lembro, estes consistiam em sinais de mãos, de patas de animais - não mais os mesmos como os cascos de camelo do Egito - sinais de pés, e outros objetos. Teria sido útil tirar cópias destes e estudá-los. Mas, na época, eu não era nem velho o suficiente nem suficientemente treinado para estar interessado. Pode-se ter uma idéia do período - antigo ou recente - durante o qual os símbolos tinham sido gravados na casca por meio da análise da espessura da casca, a natureza dos símbolos, os objetos representados, e o deslocamento desses sinais ao longo do tronco e ramos conforme a árvore cresceu. Deve acrescentar-se que essas árvores são consideradas sagradas e raramente se remove a casca para fazer corda. Também deve-se acrescentar que elas não são raras no país.

 Em suma, uma vez que o subsolo da África Preta está praticamente intacto, podemos esperar escavações posteriores para produzir documentos escritos insuspeitos, apesar do clima e suas chuvas torrenciais, que são desfavoráveis para a conservação de tais peças. Uma escrita hieroglífica autêntica, chamada Njoya, existe na República dos Camarões. Seria interessante saber se esta é tão antiga como é reivindicado. Ela é exatamente o mesmo tipo de escrita que os hieróglifos Egípcios. Finalmente, em Serra Leoa, há um tipo de escrita diferente daquela de Bamun (Camarões); esta é a Vai, que é silábica. De acordo com o Dr. Jeffreys, a escrita dos Bassa é cursiva. A dos Nsibidi é alfabética. (Cf. Baumann & Westermann, op. Cit., P. 444.)

 Assim, pode-se dizer que, até o século XV, a África Preta nunca perdeu sua civilização. Frobenius relata:

Não que os primeiros navegadores Europeus no final da Idade Média não tenham conseguido fazer algumas observações muito notáveis. Quando chegaram à Baía da Guiné e pousaram em Vaida, os capitães ficaram espantados ao encontrar ruas bem planejadas margeadas por várias léguas por duas fileiras de árvores; por dias eles atravessaram um interior coberto por campos magníficos, habitado por homens em trajes coloridos que eles mesmos haviam tecido! Mais ao sul, no Reino do Congo, uma multidão fervilhante vestidos em seda e veludo, grandes Estados, bem ordenados até ao mais ínfimo detalhe, governantes poderosos, indústrias prósperas. Civilizada até a medula dos seus ossos! inteiramente semelhante era a condição das terras na costa leste, Moçambique, por exemplo.

As revelações dos navegadores do século XV ao século XVIII fornecem a prova positiva de que a África Preta, que se estendia ao sul da zona do deserto do Saara, estava ainda em plena floração, em todo o esplendor de harmoniosas civilizações bem organizadas. Esta floração os conquistadores Europeus destruíram à medida que avançavam. Pois a nova terra da América precisava de escravos que a África oferecia: centenas, milhares, carregamentos inteiros de escravos! No entanto, o comércio de escravos pretos nunca foi um negócio seguro; este exigia justificativa; então eles fizeram do Negro metade-animal, um pedaço de mercadoria. Assim foi inventado o conceito de fetiche, como um símbolo da religião Africana. Fabricado na Europa! Quanto a mim, eu nunca em qualquer lugar na África vi nativos adorando fetiches. A idéia do "bárbaro Negro" é uma invenção Européia, que retornou e dominou a Europa até o início deste século. * [* - Frobenius, Histoire de la civilisation africaine. Paris: Gallimard, 1938.]


Cheikh Anta Diop, A origem Africana da civilização. capítulo 7 Argumentos opondo-se a uma origem Negra, páginas 329 a 334

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