O parentesco entre Etiópia e Kemet

 Reinado do Sudão e Egito Meroíticos

 Se considerarmos que a atual Etiópia * não é a Etiópia dos Antigos, que designava essencialmente a civilização Sudanesa de Sennar, devemos reagir contra uma terminologia moderna enganosa que inconscientemente transfere a Etiópia antiga em direção ao leste, para Addis Ababa. [ * - O termo "Etíope" foi aplicado essencialmente a populações Pretas, aos Negros civilizados do Sudão Meroítico, bem como à aqueles Negros selvagens que eram seus vizinhos: os Strutophagi (comedores de avestruz), Ictiofagos [Ichthyophagi] (comedores de peixe), "cavaleiros de elefante", etc. A cor da sua pele não era simplesmente "marronzada", "avermelhada", “bronzeada” ou “queimada-de-sol", era preta como breu, como a do deus Osíris; eles eram livres de qualquer mistura Branca.]

Os reis que expulsaram os Líbios usurpadores do trono do Egito, sob a Vigésima Quinta Dinastia em torno de 750 A.C., eram na realidade monarcas Sudaneses. * [ * - Eles nunca teriam previsto que uma reversão da situação poderia dia trazer um rei Sudanês para "orgulhar-se" no título de Leão de Judá. Menos de 111 séculos os separam da época da Rainha de Sabá; ainda assim, as suas características perfeitamente Negras mostram que a mistura racial dos imperadores da Etiópia, longe de remontar a uma suposta união entre Salomão e a Rainha de Sabá (reinando sobre a Etiópia e uma Arábia colonizada), veio muito mais tarde. Uma passagem lacônico na Bíblia nos informa que a Rainha de Sabá visitou Salomão, foi bem recebida, perguntou-lhe enigmas que ele resolveu, e depois voltou para casa. Nenhum documento histórico conhecido nos autoriza a falar hoje de um casamento entre Salomão e a Rainha de Sabá.]

 Em 712 Shabaka ascendeu ao trono do Egito, após expulsar Bochoris, o usurpador. O entusiástico acolhimento concedido a ele pelo povo Egípcio, que o viram como o regenerador da tradição ancestral, atesta mais uma vez, em favor daquele parentesco original entre Egípcios e Etíopes Negros. A Etiópia e o interior Africano sempre foram considerados pelos Egípcios como a terra santa de onde seus antepassados tinham vindo. Esta passagem de Chérubini indica a reação dos Egípcios ao advento da Dinastia Preto da terra de Kush (o Sudão):

Em qualquer caso, é notável que a autoridade do rei da Etiópia parecia reconhecida pelo Egito, não como a de um inimigo impondo seu governo pela força, mas como uma tutoria convocada pelas orações de um país sofrendo por longo tempo, afligido com anarquia dentro de suas fronteiras e enfraquecido no exterior. Neste monarca, o Egito encontrou um representante de suas idéias e crenças, um zeloso regenerador de suas instituições, um poderoso protetor de sua independência. O reinado de Shabaka foi de fato visto como um dos mais felizes na memória Egípcia. Sua dinastia, adotada sobre a terra dos Faraós, afileira a Vigésima-Quinta na ordem de sucessão de famílias nacionais que ocuparam o trono. * [ * - Chérubini, op. cit., p. 108.]

 Este parentesco de Egito e Núbia, de Mesraim e Kush, ambos filhos de Ham, é revelado por muitos eventos na história Egipto-Núbia. Depois de Chérubini, é a vez de Budge notar que: "Observando em Semma que o templo de Ti-Raka foi dedicado por este rei ao espírito de Osortasen III, tratado como um pai divino, Budge expressou a opinião de que os reis Etíopes locais consideravam os conquistadores Egípcios como seus ancestrais. . . . No entanto, Budge leva em consideração a convicção do Egípcio de que ele estava unido por laços estreitos com o povo de Punt, isto é, com a Etiópia de hoje. Ele observa, finalmente, que os habitantes de Punt foram descritos usando, naquela época muito remota, o tempo da rainha Hatshepsut, a barba trançada peculiar que adorna a face dos deuses em todas as representações Egípcias. " * [ * - Pédrals, op. cit., pp. 18-19.]

Esta citação dificilmente necessita de comentário. O último fator mencionado, a barba trançada, ainda é vista na África Preta. Os Egípcios estavam convencidos, não apenas dos laços estreitos entre dois povos, mas também de um parentesco biológico original, aquele de ter o mesmo ancestral, como os Pretos que então habitaram a terra de Punt. Este foi o ancestral comum que ambos Egípcios e Núbios adoraram como o deus Amon, que, como vimos, é o deus de toda a África Preta hoje.

 Até o fim do Império Egípcio, os reis da Núbia (Sudão) portariam o mesmo título do faraó Egípcio, aquele do Falcão da Núbia. Amon e Osiris eram representados como pretos-carvão; Isis era uma deusa preta. Somente um cidadão, um nacional, em outras palavras, um Preto poderia ter o privilégio de servir ao culto do deus Min. A sacerdotisa de Amon em Tebas, o lugar sagrado Egípcio por excelência, não poderia ser outra que não uma Sudanesa Meroítica. Estes fatos são básicos, indestrutíveis. Em vão tem a imaginação dos estudiosos procurado encontrar para eles uma explicação compatível com a noção de uma raça Egípcia Branca.

 "O deus Kush tinha altares em Memphis, Tebas, Meroë sob o nome de Khons, deus do céu para os Etíopes, Hércules para os Egípcios" (Pedrals, p. 29). Em wolof, Khon significa "arco-íris"; significa "morrer" em Serer. "Khon sendo entendido como: morto no outro mundo, mas ainda não tendo atingido a condição divina." Há também uma terra chamada Khons no Alto Nilo.

 Assim, a Núbia parece estar muito proximamente aparentada ao Egito e o resto da África Preta. Ela parece ser o ponto de partida de ambas civilizações. Portanto, não nos espanta hoje encontrar muitas características civilizatórias comuns à Núbia, cujo reino durou até a Ocupação Britânica, e o restante da África Preta. Logo após o fim da Antiguidade Egipto-Núbia, o Império de Gana elevou-se como um meteoro da foz do Níger até o Rio Senegal, por volta do terceiro século d.C. Vista desta perspectiva, a história Africana prosseguiu sem interrupção. As primeiras dinastias Núbias foram prolongadas pelas dinastias Egípcias até a ocupação do Egito, pelos Indo-Europeus, começando no quinto século a.C. A Núbia permaneceu a única fonte de cultura e civilização até por volta do sêxto século d.C., e, então, Gana apossou-se da tocha do sêxto século até 1240, quando a capital foi destruída por Sundiata Keita. Isto anunciou o começo do Império Mandingo (capital: Mali), sobre o qual Delafosse iria escrever: “todavia, esta pequena aldeia do Alto Níger foi durante vários anos a principal capital do maior império jamais conhecido na África Preta, e um dos mais importantes que já existiram no universo." * [* - Maurice Delafosse, Les Noirs de l‟Afrique, Paris: Payot, 1922. Este foi traduzido por F. Fligeman como The Negroes of Africa (Os Negros da África). Washington, D.C.: Association Publishers, 1931.]

Em seguida veio o Império de Gao, o Império de Yatenga (ou Mossi, ainda existente), os reinos de Djoloff e Cayor (no Senegal), destruídos por Faidherbe * sob Napoleão III. [ * - General Louis Faidherbe (1818 - 1889), O mais famoso governador Francês do Senegal.]

Na listagem desta cronologia, nós simplesmente quisemos mostrar que não houve interrupção na história Africana. É evidente que, se começando a partir de Núbia e Egito, tivéssemos seguido uma direção geográfica continental, tal como Núbia-Golfo do Benin, Núbia-Congo, Núbia-Moçambique, o curso da história Africana ainda teria parecido ser ininterrupto.

 Essa é a perspectiva em que o passado Africano deve ser visto. Tão logo quanto esta seja evitada, as mais eruditas especulações serão dirigidas para o fracasso lamentável, pois não existem especulações frutíferas fora da realidade. Inversamente, a Egiptologia ficará de pé em terra firme apenas quando esta reconhecer inequivocamente oficialmente a sua base Negro-Africana. 

Na força dos fatos acima e daqueles que estão a seguir, podemos afirmar com segurança que, enquanto a Egiptologia evitar esta base  Negra, enquanto se contentar a meramente flertar com ela, como que para provar a sua própria honestidade, a estabilidade dos seus fundamentos será comparável à de uma pirâmide apoiando-se sobre seu cume; ao final dessas especulações eruditas, ela estará ainda dirigida para um beco sem saída.



Cheikh Anta Diop, A origem Africana da civilização. capítulo 7 Argumentos suportando uma origem Negra, páginas 302 a 308.

Comentários